A difícil tarefa de conhecer o outro

A difícil tarefa de conhecer o outro

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Como se conhece alguém como ele é mesmo, isto é, na sua verdade? Conhecer o outro não é tarefa fácil

Desvendar os mistérios do recôndito da alma humana é uma tarefa difícil, que se faz por toda a vida. Desvendar o outro, conhecê-lo por dentro, tocar sua intimidade, exige esforço de quem quer conhecer; e demanda abertura de quem se deixa conhecer.

A observação do comportamento humano feita, por exemplo, pela sociologia, pela antropologia e a análise da personalidade feita pela psicologia são capazes de traçar o perfil da pessoa humana. Tudo isso é possível por meio de técnicas. Mas o que queremos abordar aqui é o conhecer o outro por intermédio do contato face a face, numa relação interpessoal, por meio da vivência, do olhar, da troca e do encontro das almas.

Conhecer o outro a partir do encontro exige arte e luta.

Jeito, manias, tiques, beleza da alma, seus cantos escuros, seu lado perverso, seu lado bom, sua face generosa, doce, delicada e, também, amarga, ácida, enfim, as facetas da alma humana são cheias de contradições no seu interior.

Colocar-se por inteiro

Para captar os sinais do particular humano, para conhecer o outro na sua intimidade, é preciso colocar-se por inteiro na presença desse alguém, a fim de ouvir o seu interior, perceber os seus movimentos (jeitos, modo de ser, de se comportar, de pensar etc.).

Existem várias formas de se conhecer alguém. Uma forma direta é a pessoa dizer quem ela é. Ela fala sobre a sua vida, história, seus medos, desejos, sonhos, suas angustias, dúvidas e sobre o modo como enxerga o mundo. No entanto, as palavras precisam ser verdadeiras e assertivas. Se uma pessoa falar alguma coisa para outra, mas, no fundo, não estiver querendo dizer aquilo que disse (e acaba escondendo a verdade), as palavras servirão para transportar o não exato, a inverdade, a mentira dela mesma; servirão apenas para transportar alguns conceitos e ideias que não correspondem à verdade sobre ela.

Devemos ser verdadeiros sempre. Quando se fala a verdade, o corpo, a mente, a alma e o coração de quem fala, todo o seu ser, é modificado; o corpo da pessoa muda, e isso se percebe na mudança facial, no movimento das mãos, no batimento cardíaco, ou seja, todo o organismo se altera.

Dizer a verdade mobiliza o ambiente interno da pessoa e o das pessoas que estão em volta. Podemos perceber os sinais da verdade no ar. É incrível o que a verdade é capaz de fazer…

Natural e sobrenatural

Temos um discernimento natural que é capaz de captar (inferir) o que o outro quer dizer, mesmo que esse não diga nada, ou seja, não verbalize. Somos capazes de inferir se alguém está com medo, receoso, duvidoso, mentindo, surpreso etc.; temos essa capacidade natural; somos dotados dessa capacidade em nossa alma, de perceber algumas realidades sensíveis, de perceber o que as pessoas sentem. Além desse discernimento natural por meio do Espírito Santo (por intermédio do Dom de Ciência), podemos compreender o que se passa na alma do outro; aí, já entramos no campo da mística, do transcendental, que não é passível de provas, mas é real; faz parte do mundo espiritual.

O ato de compreensão, entendimento, conhecimento do outro, requer que ambos os seres verdadeiramente queiram conhecer-se; conhecer o outro não é tarefa fácil; digo conhecê-lo na sua verdade, no seu interior, sem máscaras, sem disfarces, sem representações, sem mentiras…

Mas onde está essa verdade? Quais os caminhos que devemos percorrer para enxergar a verdade do outro? Já apontamos alguns deles em linhas anteriores, mas vamos explorar mais.

Confronto

O encontro com o outro é sempre um confronto. Quando falamos a alguém as nossas verdades (ou ao menos parte delas), desnudamo-nos para o outro. Aí nos indagamos: pronto, eu disse; falei de mim; o que o outro vai fazer com isso? Contar as nossas verdades é sempre um risco, e requer uma relação de confiança.

A Verdade é Jesus; portanto se alguém quiser conhecer a Verdade, precisará encontrar Jesus. Sendo assim, não poderão existir outras verdades, porque somente Jesus é a Verdade; a Verdade é uma Pessoa, é Jesus: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Isso está claro para nós. Todavia, aqui nos referimos à verdade não no nível espiritual, pois só existe uma, Jesus Cristo; mas estamos tratando aqui da verdade como algo que está em conformidade com a ideia, com o objeto; verdade aqui significa “conformidade da ideia, com o objeto, do dito com o feito, do discurso com a realidade” (Dicionário Priberam Online). Por exemplo: o caminho da esquerda leva ao Shopping; e o caminho da direita leva à praça. Logo, se alguém informar que o caminho da esquerda leva ao Shopping, essa pessoa informou a verdade, isto é, o caminho que leva ao Shopping, discurso e a realidade coincidiram. Outro exemplo: João ama Lúcia. Se alguém disser que João não ama Lúcia, dirá uma mentira.

Dança

Dar-se a conhecer é como uma dança ritualística, na qual, por livre escolha, a pessoa se posiciona como numa arena e começa a fazer movimentos em que o outro tenta compreender os seus significados.

Interior insondável

O ser humano é singular, é um ser único; conhecê-lo é mergulhar no desconhecido; o ato de conhecer o nosso interior poderia ser comparado à ação de alguém que vai de carro pelas ruas de uma cidade, sobe e desce morros, entra em avenidas e sai de ruas, cruza bairros e, por mais que percorra muitos amplos trechos, ainda existirão lugares a conhecer, a serem visitados; é assim o nosso interior; sondá-lo por completo, é impossível; apenas Deus é capaz de fazê-lo.

Com poderosos satélites, o homem mapeou todo o planeta, fotografou as mais longínquas galáxias e buracos negros. Com potentes microscópios, o homem desvendou o mundo intramolecular e subdividiu o átomo em partículas subatômicas ainda menores. Por meio da física teórica, especula-se que a menor partícula “existente” deverá ter o “comprimento de Planck”. O homem mergulhou pelos oceanos, atravessou mares, desertos, escalou montanhas e percorreu regiões polares. Imagens televisivas divulgaram que o homem também teria pisado o satélite da Terra: a Lua. O homem praticamente esquadrinhou, fotografou, mapeou e visitou todo o planeta. Com o uso da radiação, passou a observar o estado biológico dos tecidos. Nosso cérebro foi fotografado e, em boa parte, desvendado.

A inteligência do homem permitiu-lhe conhecer muito do mundo a sua volta. No entanto, o mundo interior da pessoa humana, as suas “verdades” interiores e o seu ser interior continuam sendo um grande desafio para o homem. A sociologia, antropologia, psicologia, filosofia, psiquiatria, entre outras ciências que lidam com o comportamento humano, procuram indagar sobre o homem e compreendê-lo, tamanha é a tarefa de conhecer o interior da pessoa humana.

Espaço privado

Existe um lugar em cada um de nós que é o nosso espaço privado. Esse espaço não deve, ou pelo menos não deveria, ser adentrado de qualquer jeito por qualquer pessoa. É um setor privado, que cabe a cada ser decidir se convida o outro a participar dele ou não. É um espaço inviolável, íntimo. Só temos acesso a ele, se o outro nos autorizar a entrada.

O homem e a mulher, casados, vivem juntos, dividindo uma só vida e doando-se mutuamente; mas mesmo construindo-se um ao outro, marido e esposa carregam consigo o seu espaço privado, íntimo, inviolável, que se abre (ou não) a partir da convivência, do trato diário, e requer, em primeira instância, que o outro (o marido e a mulher) diga isto: sim, eu permito, eu quero que você adentre o meu interior e me conheça. É isto, entre tantas outras coisas, que marido e mulher farão durante a vida: conhecerem-se, tornarem-se mais íntimos um do outro (e o tempo é a grande chave nesse ponto), para se cumprir (além da intimidade sexual, entre outras), as palavras de Gênesis 2. 24: “e os dois serão uma só carne”.

Para os casados, podemos lançar esta sentença: Para toda a minha vida te conhecer. Isso é feito de maneira objetiva, pois ambos sabem que terão um ao outro até o fim da vida. Mas como isso funciona para os namorados, que ainda não se uniram no matrimônio? Poderíamos lançar outra sentença: Conhecer-te dentro do possível; conhecer-te penetrando em tuas verdades a partir daquilo que me permitires saber.

Não sabemos tudo sobre nós mesmos. Você é um mistério para si mesmo. Ainda não nos deciframos e nunca o faremos totalmente. O percurso que fazemos em nossa morada interior dura a vida inteira. Chegar ao que Sócrates dizia, “conhece-te a ti mesmo”, é uma missão fascinante. Essa tentativa de nos esclarecermos a nós mesmos é um percurso travado já no ventre materno, que se constrói ao longo da vida.

Não se afirma que sejamos totalmente desconhecido para nós mesmos, para os outros ou que não saibamos nada sobre nós. A questão é que não nos desvendamos por inteiro nem desvelamos o mundo ao nosso redor, mas o pouco que sabemos nos permite viver, interagir, dialogar, estar em equilíbrio conosco mesmos e com o mundo; o equilíbrio é fundamental para o caminhar humano. O homem precisa pôr-se em equilíbrio com os três elementos fundamentais de sua existência, obedecendo a uma hierarquia de comando, como nos aponta o pensador e sacerdote Michel Quoist: o mundo espiritual (sua alma), o mundo sensível (razão) e o mundo físico (corpo).

Pensamentos mudam          

Nosso modo de ser e de pensar é modificado ao longo da vida, sendo bastante influenciado pelo meio em que convivemos. A sociedade muda, o mundo se transforma. As descobertas científicas, os avanços da tecnologia, a dinâmica mutante da sociedade e as pessoas com as quais nos relacionamos afetam a nossa forma de ver o mundo.

Os outros também dizem quem somos

Você tem um juízo de si mesmo; você se enxerga de uma maneira. Mas será que a visão que você tem de si coincide com a visão que os outros têm de você? Quando existem opiniões semelhantes sobre nós, não as digo unânimes, de ao menos três pessoas, já são o suficiente, pois isso é sinal visível de que algum aspecto da nossa maneira de ser as pessoas o captaram. Isso que as pessoas falam de você o incomoda? Coincide com o que você pensa sobre si? Se isso o incomodar, é sinal de que existe alguma verdade naquilo que expressam a seu respeito, e você ou não está enxergando ou não quer enxergar.

Quando nos defrontamos com a alma humana, encontramos múltiplas janelas e portas a serem adentradas e conhecidas. No confronto, no ato de conhecer a alma humana (conhecer a pessoa em si mesma), deparamo-nos com múltiplos cenários. Há os que se parecem com um carro blindado: não se mostram prontamente; alguns são como o topo de uma montanha: para conhecê-la, temos de enfrentar a tarefa difícil da subida; outros já se escancaram e mostram o seu interior de uma forma leve, descontraída, sem desconfiança; apresentam-se como um campo aberto onde podemos caminhar e conhecer seus lugarejos; essas se abrem de forma a nos permitir surfar no seu interior.

A psicologia e a sociologia, por exemplo, são capazes de compreender o homem. A ciência é um dom de Deus e deve ser usada para o bem. No entanto, o que discutimos aqui não é o ato de conhecer alguém a partir de um questionário, de um teste ou de uma observação, mas conhecê-lo a partir do confronto das almas.

Quando uma pessoa se encontra com outra, aí se dá, ou não, o conhecer. A medida do conhecimento de alguém é a medida da abertura do coração desse alguém.

Conhecer o outro é uma arte e, muitas vezes, uma guerra. Em suma: arte e guerra das mais fascinantes da vida.

Do seu irmão,
THIAGO ZANETTI